Introdução
No dia 19 de maio, os defensores da implementação de um mercado regulado de carbono no Brasil obtiveram uma vitória. Apesar de não criar o mercado em si, o governo federal aprovou um decreto que estabeleceu as bases para sua eventual implementação.
Mesmo antes dessa novidade legislativa, o futuro estabelecimento de um instrumento de precificação de carbono no país já parecia inevitável. No ano passado, o Brasil assumiu na COP 26 o compromisso de reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 50% até 2030 e zerá-las até 2050, metas que passam, quase que necessariamente, pela criação de um mercado de carbono.
Nesse sentido, está claro que os pecuaristas brasileiros enfrentarão uma série de dificuldades em um futuro relativamente próximo. A criação de bovinos está entre as atividades que mais emitem gases do efeito estufa no Brasil, o que significa que são altas as chances do setor começar a ser regulado. Portanto, eventualmente os produtores se verão obrigados a comprar permissões ou mudar seu modelo de criação, duas possibilidades que envolvem custos significativos.
Frente a esses desafios, a StoneX elaborou um pequeno guia sobre o assunto. Estão aqui explicados o que é um mercado de carbono, quão próximo o Brasil está da criação de um e os desafios/oportunidades que ele traz para a pecuária bovina.
O que é um mercado de carbono?
Já existe um mercado de carbono no Brasil. Denominado de mercado voluntário, ele se baseia em empresas que emitem gases do efeito estufa (GEE) comprando créditos de carbono de projetos e iniciativas que sequestram GEEs da atmosfera. O resultado é uma soma zero de emissões, com os agentes envolvidos neste processo podendo dizer que são sustentáveis e que não contribuem para o aquecimento global.
A questão dessa modalidade é que, como o nome diz, ela é apenas voluntária. Companhias preocupadas com a questão ambiental ou com a sua reputação podem escolher comprar créditos para compensar suas emissões. Entretanto, dado os custos relacionados a essa atividade, a maioria opta pela não adesão, o que acaba limitando o tamanho e o impacto do mercado voluntário.
Bem maior que o voluntário e ainda ausente no Brasil é o chamado mercado regulado. Este tipo de mercado de carbono se divide entre duas modalidades. Em uma delas, o Estado determina quanto que cada setor pode emitir, distribuindo ou vendendo permissões equivalentes a esse teto para as empresas. Ao final de um determinado período, as que emitirem menos carbono do que a quantidade de permissões em sua posse, poderão vendê-las. Aquelas que emitirem mais, terão que comprá-las. Gradualmente, o limite vai sendo reduzido, garantindo a diminuição constante das emissões. Dessa maneira, se estabelece um enorme mercado de negociação, com o preço das permissões podendo ser estabelecido no próprio mercado ou por determinação estatal.
No segundo tipo de mercado regulado, o Estado simplesmente impõe uma taxa sobre as emissões de gases do efeito estufa. Frente ao aumento dos custos proporcionados por essa medida, as empresas passam a ter um incentivo para mudar seu modelo de produção, eventualmente resultando na redução das emissões.
Vale ressaltar que tanto no sistema de permissões, como no de taxação, os setores regulados pela legislação variam de país para país. No momento, a maior parte dos 68 mercados regulados já implementados se encontram em países desenvolvidos. Como nesses territórios a maior parte das emissões provém dos setores energético e industrial, são sobre eles que incidem os instrumentos de precificação, com o setor agropecuário geralmente ficando de fora. Entretanto, conforme os países subdesenvolvidos forem implementando seus próprios mercados, a tendência é que neles as atividades agropecuárias passem a ser reguladas, dado seu maior peso e importância.
Recentemente, a Nova Zelândia divulgou um plano para começar a taxar as emissões de metano provenientes de seus enormes rebanhos bovinos e caprinos. Caso implementado, o país da Oceania pode ser o primeiro a cobrar de seus pecuaristas pela emissão de GEEs de seus animais.
Quão próximo o Brasil está de regulamentar um mercado de carbono?
No final de 2021, foi proposto na forma do Projeto de Lei 528 a regulamentação no Brasil de um mercado de carbono com base no sistema de cap and trade. O PL circulou na Câmara dos Deputados e ganhou impulso durante a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 26), já que no evento o Brasil se comprometeu a reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 50% até 2030 e em 100% até 2050. Entretanto, o Projeto acabou perdendo momento, não foi votado e agora se encontra engavetado.
Apesar desse revés, em maio de 2022, mais especificamente no dia 19, os entusiastas do mercado de carbono voltaram a se animar quando o governo federal emitiu um decreto (Decreto Federal n° 11.075) sobre o assunto. Embora não tenha criado o mercado em si, o decreto estabeleceu as bases para a sua implementação, dando mais um passo na direção de algo que parece inevitável.
Em primeiro lugar, foram estabelecidos prazos, ainda que pouco precisos, para a definição dos limites iniciais de emissão. Em 180 dias, as entidades dos setores afetados terão a oportunidade de apresentar suas propostas, prazo que pode ser prorrogado por outros 180 dias. Ao final desse período, a decisão final ficará a cargo do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Economia, ou seja, do Poder Executivo. Quando decididos, os limites serão anunciados através do que o governo chamou de Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas.
A segunda grande medida estabelecida pelo decreto foi a criação de um órgão que ficará responsável por registrar as emissões das empresas. Ele foi denominado Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases do Efeito Estufa (Sinare) e ficou sob a guarda do Ministério do Meio Ambiente.
Na prática, portanto, o decreto estabeleceu um prazo para a definição das metas de emissão e, assim que elas forem decididas, criou condições para as empresas determinarem quantas permissões elas terão que comprar.
Apesar do claro avanço na direção da criação do mercado regulado, muitas questões foram deixadas em aberto pelo decreto. A principal e mais óbvia delas é que em nenhum momento ele realmente estabeleceu o mercado regulado. Mesmo que o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Economia sigam o estipulado e elaborem os Planos Setoriais e mesmo que o Sinare realmente force as empresas a registrar suas emissões, a posterior obrigação de comprar permissões de carbono depende da elaboração de uma nova lei. O PL 528, que circulou na Câmara em 2021, resolveria essa questão. Entretanto, como sua aprovação depende inteiramente de vontade política, é algo que é impossível de prever.
O que pode ser feito é traçar o menor prazo possível para a aprovação de um mercado de carbono. Supondo que o PL 528 seja regulamentado, temos a seguinte perspectiva. Dado que o decreto do governo federal é de maio deste ano, os representantes dos setores afetados terão até maio de 2023 para apresentar suas propostas de limite de emissão, seguindo os 180 dias, prorrogáveis por mais 180, estipulados pelo decreto. Depois disso, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Economia devem demorar pelo menos mais seis meses para analisar as propostas e elaborar os Planos Setoriais. Nisso, já acabou o ano de 2023. No ano seguinte, as empresas começariam a monitorar suas emissões. E, por fim, no início de 2025, as corporações submeteriam ao Sinare seus respectivos inventários. Portanto, caso tudo seja feito sem atrasos e contando com a aprovação do projeto de lei no Congresso, o mercado de carbono regulado só começaria a existir por volta da segunda metade de 2025.
Frente ao que aqui foi exposto, é possível dizer que o Brasil está há pelo menos três anos de distância do estabelecimento de um mercado de carbono. Dada a enorme controvérsia que cerca o assunto, atrasos consideráveis neste prazo devem ser esperados. Entretanto, com o tema do aquecimento global estando cada vez mais em pauta, sua aprovação, eventualmente, deve acontecer.
Riscos e oportunidades de um mercado regulado de carbono
Em 2020, o Brasil emitiu 372 milhões de toneladas de equivalência em dióxido de carbono a partir da fermentação entérica, nome dado ao processo digestivo de animais ruminantes. Esse volume totaliza 17,3% de todas as emissões brasileiras de gases do efeito estufa e está diretamente relacionado aos mais de 200 milhões de bovinos espalhados pelo país.
Além disso, outros 46,2% das emissões brasileiras derivaram de mudanças de uso da terra e florestas. Embora a pecuária bovina não seja a única atividade relacionada a isso, é sabido que uma parcela dos hectares que são desmatados acabam se transformando em áreas de pastagem.
Emissões brasileiras de gases do efeito estufa (em milhões de toneladas de CO2 equivalente)

Sendo assim, é possível afirmar que a pecuária bovina se caracteriza como um dos principais setores responsáveis pelas emissões brasileiras de gases do efeito estufa. Uma das consequências diretas dessa afirmação é que, caso um mercado regulado de carbono seja estabelecido, é muito provável que a pecuária seja um dos setores que precisarão ser ajustados. De fato, o decreto federal emitido em maio específica isso, ainda que indiretamente.
Portanto, no momento em que um mercado de carbono for aprovado, as fazendas precisarão começar a fazer levantamentos anuais das suas emissões de metano, dióxido de carbono, óxido nitroso, entre outros gases que contribuem para o aquecimento global. Incorrerão em custos extras aquelas que continuarem emitindo quantidades significativas.
Apesar de ser um prognóstico negativo para a maioria dos produtores, o estabelecimento do mercado de carbono pode se apresentar como uma oportunidade. Implementando mudanças em sua propriedade, os pecuaristas podem aumentar significativamente a sustentabilidade da sua fazenda. Nesse cenário, eles poderiam se transformar não em consumidores de carbono, mas sim em ofertantes.
O caso mais inovador de produção pecuária sustentável está relacionado à integração-lavoura-pecuária-floresta (ILPF). Segundo estudo da Embrapa, este tipo de propriedade gera uma série de benefícios ao seu proprietário. Em primeiro lugar, a diversificação garante uma redução nos riscos, já que os ganhos do pecuarista passam a decorrer não só da produção animal, mas também da agrícola e madeireira. Ademais, todas essas atividades se tornam mais lucrativas em um regime ILPF do que quando feitas individualmente, uma vez que a junção de atividades melhora significativamente a qualidade do solo. Quando se leva em conta que este tipo de propriedade muitas vezes sequestra mais GEE do que emite, percebe-se que é o ideal para um cenário em que existe um mercado de carbono regulado.
É claro que a transição de uma propriedade tradicional para uma de integração-lavoura-pecuária-floresta é bastante custosa e complicada. Envolve não só uma mudança radical na fazenda, mas também a necessidade do pecuarista aprender como manejar uma produção agrícola e madeireira. Entretanto, a ILPF é o caso mais extremo de sustentabilidade. Existem uma série de adaptações intermediárias que podem ser feitas para garantir ao pecuarista a diminuição nas suas emissões. Sendo assim, a implementação de um mercado de carbono pode se transformar não em um custo, mas sim em uma fonte lucro para o produtor.